Artigo de Opinião, “Este país não é para investigadores/as!”, por Sérgio Carvalho
Este país não é para investigadores/as!
No início do ano, o mundo foi abalado por uma pandemia que alterou a normalidade das nossas vidas, e nos puxou o tapete debaixo dos pés de grande parte do que nos sustentava. Não apenas a incontrolabilidade e a imprevisibilidade de um vírus do qual se sabia muito pouco provocaram desafios ao nível da nossa saúde mental, como também o impacto individual (e.g., isolamento) e socioeconómico (e.g., desemprego) das medidas de contenção da progressão das infeções têm contribuído para um aumento da sintomatologia psicopatológica na população. Esta pandemia trouxe à luz, como no teste do algodão, as fragilidades de um país cujo orçamento para a saúde o empurra a viver no limite dos seus recursos para a prestação de cuidados de saúde em geral, e para a promoção de saúde mental em particular.
Enquanto profissionais, temos alertado para a importância da saúde mental, para o investimento na contratação de psicólogos/as nos hospitais, centros de saúde e escolas, reiterando o potencial contributo da psicologia na promoção de uma sociedade com maior bem-estar, qualidade de vida, satisfação com a vida, e consequentemente mais eficaz e produtiva (não apenas do ponto de vista económico, mas também humano). Cabe-nos, enquanto psicólogos/as, e alicerçados/as nos princípios éticos e deontológicos que regem o exercício da nossa profissão, assegurar que as intervenções psicológicas implementadas no nosso país sejam baseadas em evidência empírica robusta sobre a sua eficácia e custo-efetividade. Cabe-nos assegurar que o exercício da psicologia no espaço público contribua, de forma sólida, para a literacia em saúde e doença mentais assente em evidência, e não apresente no espaço público apreensões sensacionalistas infundadas e imediatistas sobre a natureza humana.
É certo que a complexidade humana impede-nos de olhar para a psicologia como uma ciência dura, e para as intervenções psicológicas como meras aplicações técnicas estandardizadas one-size-fits-all, sem considerar fatores inespecíficos não negligenciáveis na sua eficácia (e.g, a relação terapêutica, o setting terapêutico, os fatores contextuais/ambientais que se cruzam com a psicoterapia, a criatividade do terapeuta). É, no entanto, a partir de um compromisso inabalável com os dados e com a evidência empírica que o contributo da psicologia para a promoção da saúde mental se poderá apresentar como irrefutavelmente necessário. Para isso, é fundamental o investimento na ciência em psicologia.
Acontece que a carreira de investigação em Portugal sofre de uma precariedade crónica, na qual assenta – e, em certa medida, da qual depende – a produção científica feita no nosso país. É certo que a debilidade política em solucionar este problema não impacta apenas a investigação psicológica. Ainda assim, dado o limite de alternativas de financiamento para áreas científicas que não as ciências duras e/ou médicas, a investigação em psicologia no nosso país encontra-se refém de vínculos laborais precários. O que deveria funcionar como um estatuto transitório (bolseiro de investigação) que serviria meramente de porta de entrada para o universo científico, acaba por se calcificar nos corredores da academia portuguesa. O investimento comprometido e a longo-prazo para com a ciência, é substituído, pelos sucessivos governos, por medidas amortizadoras das estatísticas do emprego científico. A precariedade das bolsas de pós-doutoramento foi substituída pela precariedade de contratos de 36 meses no âmbito de projetos IC&DT, cujo termo resolutivo certo é justificado pela alínea i) do n.º 1 do artigo 57.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP): “Para o desenvolvimento de projetos não inseridos nas atividades normais dos órgãos ou serviços”. Acontece que esses projetos são, de facto, as atividades normais das unidades de investigação, e o que sustenta, em grande medida, a produção científica no nosso país. Projetos esses que, com algumas oscilações, estão longe de fornecer a estabilidade necessária ao empreendimento científico.
Consideremos, por exemplo, o último concurso de Projetos IC&DT: foram submetidos 155 projetos em psicologia, 85 elegíveis, dos quais apenas 8 tiveram financiamento. Adicionalmente, o Estímulo ao Emprego Científico apresenta-se-nos como uma forma de investimento na retenção dos/as nossos/as investigadores/as. Mas se olharmos para os números do último concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual (CEECIND), no qual das 67 candidaturas de investigadores júnior em psicologia, apenas 5 foram financiadas, concluímos que nem a melhor das racionalizações meritocráticas sustentam este esvaziamento e baixo investimento na ciência psicológica. Adicionalmente, para além da incapacidade material da Norma Transitória do Decreto- Lei n.º 57/2016 (alterado pela Lei 57/2017) reter parte significativa dos/as nossos/as investigadores/as, rege-se por uma legislação especial face ao Código do Trabalho, na qual os limites máximos para o contrato a termo incerto são de 6 anos (e não 4 anos), servindo de mera dilatação da precariedade do emprego científico. A reflexão conjunta sobre o emprego científico no nosso país, e sobre a necessidade de uma Ordem dos Psicólogos comprometida com a ciência psicológica, são um imperativo ético. Não apenas porque a precariedade laboral é, em si mesma, uma questão eticamente reprovável dado o seu impacto na saúde psicológica, como também por ter um impacto concreto na qualidade da investigação em psicologia, cujo alcance dos dados, e, consequentemente, a sua robustez empírica, ficam reféns de ciclos contratuais transitórios.
Sérgio Carvalho
Candidato à Assembleia de Representantes pela Região Centro